Porquê? Porquê tu, estendida naquela maca, naquele
tecido tão indigno?
Tu. O teu cabelo brilhante contrastava com o negro da
solidão e iluminava a
pequena réstia de esperança, contida naqueles
monitores cardíacos. Nada mais me
confortava, quando sentia a tua pele sedosa, e inalava a fragrância que de ti
exalava, os teus lábios doces contra a
minha face, os teus olhos belos. E tu ali.
E aí descobri a real
existência em ti: Por
detrás da pele nua e de
tudo o que me revelaras até ao momento, órgãos, artérias, veias
ocupavam o teu interior, rodeando o coração.
Não entendo porquê. Não entendo, porquê uma anatomia tão complexa, quando
amar-te completava qualquer necessidade do organismo, quando, na realidade a
tua presença preenchia
qualquer vazio na minha alma. Porque tu não
criavas o futuro - tu era-lo.
Mas, porque a doença
te retirou do sentimento e do conforto que criámos na nossa casa, e te levou para os
portões dolorosos da
morte, a nossa vida conjunta, separou-se e criou duas vidas, dois mundos, dois
corpos diferentes: no mundo do Amor, vivemos segundo o coração, e na união do corpo, nesse
mundo extenso e vasto ocupado pela liberdade ao nosso espírito (unido por
esse traço delimitado por um
caloroso 'amo-te, para sempre'); enquanto, aquele mundo que tentamos
procrastinar intensamente, a Realidade, esse lugar onde todos os humanos
residem e a complexidade do ser se entrega ao mundo e nele penetra, criando a
escuridão da Solidão.
E apesar de toda a minha experiência médica, a tensão de sofrer por ti,
ainda prevalecia e se intensificava com a passagem cruel do tempo: deixar-te
sofrer, e permitir que vivas mais algum tempo, como a Realidade impõe, ou permitir que
o mundo do Amor me influencie, e acabar com o teu sofrimento - permitindo que a
Morte, esse terceiro e inaceitável mundo, se
apodere impiedosamente de ti. O que fazer?
Olhei intensamente os meus colegas, suplicando pelo seu
apoio e, através da magia de um
'sim', tudo se clareou - o meu amor por ti (se é que ainda o sentes) não permite que te faça sofrer nem mais
um segundo - rasguei, ainda com a imortal última
lágrima, o código de deontolgia
médica, apenas para
afirmar a rendição à fatalidade do amor.
E, parando de pestanejar, deixei-te morrer. Só não
sei ainda a dor de aceitar que jamais voltarás...Mas
amar-te-ei para sempre.
Campeonato Nacional de Escrita Criativa
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