quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O médico olhava sem pestanejar para o paciente, havia uma tensão estranha na sala.


            Porquê? Porquê tu, estendida naquela maca, naquele tecido tão indigno?

            Tu. O teu cabelo brilhante contrastava com o negro da solidão e iluminava a pequena réstia de esperança, contida naqueles monitores cardíacos. Nada mais me confortava, quando sentia a tua pele sedosa, e inalava a fragrância que de ti exalava, os teus lábios doces contra a minha face, os teus olhos belos. E tu ali.

            E aí descobri a real existência em ti: Por detrás da pele nua e de tudo o que me revelaras até ao momento, órgãos, artérias, veias ocupavam o teu interior, rodeando o coração. Não entendo porquê. Não entendo, porquê uma anatomia tão complexa, quando amar-te completava qualquer necessidade do organismo, quando, na realidade a tua presença preenchia qualquer vazio na minha alma. Porque tu não criavas o futuro - tu era-lo. 

            Mas, porque a doença te retirou do sentimento e do conforto que criámos na nossa casa, e te levou para os portões dolorosos da morte, a nossa vida conjunta, separou-se e criou duas vidas, dois mundos, dois corpos diferentes: no mundo do Amor, vivemos segundo o coração, e na união do corpo, nesse mundo extenso e vasto ocupado pela liberdade ao nosso espírito (unido por esse traço delimitado por um caloroso 'amo-te, para sempre'); enquanto, aquele mundo que tentamos procrastinar intensamente, a Realidade, esse lugar onde todos os humanos residem e a complexidade do ser se entrega ao mundo e nele penetra, criando a escuridão da Solidão.

            E apesar de toda a minha experiência médica, a tensão de sofrer por ti, ainda prevalecia e se intensificava com a passagem cruel do tempo: deixar-te sofrer, e permitir que vivas mais algum tempo, como a Realidade impõe, ou permitir que o mundo do Amor me influencie, e acabar com o teu sofrimento - permitindo que a Morte, esse terceiro e inaceitável mundo, se apodere impiedosamente de ti. O que fazer?

            Olhei intensamente os meus colegas, suplicando pelo seu apoio e, através da magia de um 'sim', tudo se clareou - o meu amor por ti (se é que ainda o sentes) não permite que te faça sofrer nem mais um segundo - rasguei, ainda com a imortal última lágrima, o código de deontolgia médica, apenas para afirmar a rendição à fatalidade do amor. E, parando de pestanejar, deixei-te morrer. Só não sei ainda a dor de aceitar que jamais voltarás...Mas amar-te-ei para sempre.


 
Ricardo Guerra   6ºB

Campeonato Nacional de Escrita Criativa
 
 

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