quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Manuela não acreditava no amor


            Por ti. Foi por ti que me tomaram como louca.

            Por ti. Por ti tomei o teu coração como meu e me uni a ti, deixei a minha razão de existir e penetrei na tua.

            Até que aquele dia fatal chegou e todos os meus choros e lágrimas derramadas revelaram que deixei de acreditar no amor a mim própria, na minha, só minha alma. Essa alma que ainda recorda os tempos doces em que te observava deitado, estendido na areia, esperando apenas que o tempo se imortalizasse e terminasse aquele espaço de história. Esses tempos doces em que a chuva não era um incómodo. Esses tempos doces em que, um momento, um olhar, tudo era um pretexto para estarmos juntos. Esses tempos em que a certeza da tua existência, se sobrepunha a tudo, inclusive a nós mesmos. Esses tempos em que a essência do caminho para a felicidade se desintegrava de tudo o que a compôs ao longo do tempo. Esses únicos tempos, em que o sofrimento, a dor pelo outro, se mostrava a maior alegria. Nesses tempos em que a dúvida parecia morrer enquanto nascia. Esses tempos doces da inocência.

            E agora, nada me fará recuperar o tempo perdido a mirar aquelas letras vermelhas consumidoras da mente de todos os que as contemplam e sentem tristemente o seu significado, que atua como um fogo ardente, possuidor de tudo. Toda a frenética energia gasta em vão, para poder sair daquela cama bolorenta, enquanto observava aqueles doidos inconscientes. Sentir essas paredes enferrujadas pelo tempo e tristeza, a dor que será para alguns como eu, o revestimento do seu corpo por aquelas vestes, revelando as letras do letreiro desse edifício diabólico: "HOSPÍCIO". Olhar os enfermeiros caminhando pelo soalho imundo, enquanto permitem que este se liberte da opressão eternamente imposta, através do ranger.

            Porque tu me amaste, porque o teu imenso carinho persuasivo me revelou o sentido da vida. Porque me criaste levemente como o ar, que há tanto tempo não sinto na minha face rosada, oferecendo-me toda a dignidade do orvalho pousado nas folhas verdes e belas das plantas. Porque o mundo só tem o valor que merece, quando desaparece das nossas vidas e crava no nosso coração a saudade por uma vida revitalizada e enérgica.

            E tudo isto, porque eu, Manuela, te quis retribuir todo o amor que me ofereceste, abandonando o meu mundo por ti. Pela nossa vida. Juntos. Eternamente.


 
Ricardo Guerra   6ºB


Campeonato Nacional de Escrita Criativa
 

                                                                                                                     
                                                                                                                 

Uma criança com a cabeça pousada no ombro da sua mãe


            Uma criança com a cabeça pousada no ombro de sua mãe. Era como me sentia nesse local. Era como me sentia: extremamente dependente, como um ser eternamente sedento de um pilar onde se apoiar.

            Por essa razão me tornei inútil: por nesse decrépito hospital me assumir incapacitado de viver sem auxílio, apenas por um súbito sintoma se revelar no meu corpo e nele indiciar a mais dolorosa doença, capaz de travar todo o percurso da vida: o cancro.

            Porquê?

            Relembro ainda o momento em que chegaste ao quarto onde me situava, abrindo a porta vagarosamente, como se um medo obscuro percorresse as entranhas do teu sangue por cumprires novamente a promessa de seres minha fiel companheira em tudo. Mas tu não merecias isso. Não merecias viver isto comigo.

            E eu não te mereci. Não mereci a tua coragem de te moveres sobre o meu corpo, tentando sentir a mais intensa das loucuras do amor, tomando-o como a resolução do nosso pacto, pois já não existe. Não mereci o aconchego que deste ao meu insano coração, aquando tive que compreender que a morte inevitavelmente chegaria. E sei que apenas o fizeste, porque possuías a eterna fragrância da compaixão.

            Porque foste a única que, encarnando o distinto papel materno, me aceitou como pobre infante incapaz de ser independente, porque foste aquela que incansavelmente me auxiliou e esteve  sempre presente no meu caminho. Como esposa que (me) és.

            E, porque o cancro me tornou indigno do teu suor, tornando-te parte de mim, eliminou a tua existência real neste mundo, deixando-te somente os destroços trágicos da tua perfeição e a ambição de novo possuíres o teu interior mundo, a tua vida imensamente bela... Ainda discretas lágrimas se permitem expelir impiedosamente, quando reflito na tristeza com que de tudo abdicaste, para me poder apresentar como parte do teu ser.

            E, finalmente, o dia em que a tua vida se desconectou da minha, através da Morte, através da paragem fatal do bater do coração, impôs-se suave e dolorosamente nesse espaço de tempo: os teus olhos aterradoramente cerrados, os nossos corações aceleraram-se inconscientemente: Uma tensão estranha, talvez por ambos nos apercebermos da morte que estava prestes a chegar e a cobrir-me o coração, pelas últimas palavras que se permitiram ainda expressar por esse suspiro mortal: "Perdoa-me, pelo cancro, que te privou da vida. Minha outra mãe".

            Um último beijo teu tocou na minha face. Amo-te.

 

 Ricardo Guerra   6ºB
 
Campeonato Nacional de Escrita Criativa

                                                                                                                               

Um homem idoso acorda e está fechado numa cave


           

            Tu. Eu. Éramos apenas tu e eu. E a barreira impiedosa que nos separava. Essa, que foi criada por nossa vida errante que permitiu inconscientemente, que as incansáveis ilusões se libertassem do seu corpo intensamente persuasivo e nos entregassem à luz da Realidade: dura, nua e crua.

            E a culpa fora somente do amor, dessa loucura a que o ser humano se une. Pelo outro. Por ti. Por aquele momento letal ao qual o meu corpo frágil ainda se incomoda, esse momento em que o cruel fogo da mediocridade, consumiu a tua alma e a tua razão real de existência. Tal como possuiu, nesse mesmo instante, a minha alma que para sempre se considerará incompleta, sedenta da tua essência pura.

            E nesse preciso espaço de tempo, no qual as rugas que dolorosamente rasgam minha inútil pele se deixaram desvanecer e abrir esse secreto e puramente misterioso Portal do Sonho, te revejo tal como quando nos encontramos neste solo que abriga nossos seres: O teu cabelo doce balanceando no ar infinito e os teus olhos cristalinos revelando a tua beleza intensa.

            E nós. E a nossa vida. Apenas a dor imensa nela sobreviverá, essa traidora dor que tudo impede, tudo impossibilita. A realidade de jamais te sentir de novo, de te amar como outrora te amava, te criava como musa, te idolatrava. Nada permitiria que o sonho terminasse, que a vida se deixasse continuar, que a frieza da barreira inamovível revelasse alguma honestidade algum poder sobre o meu coração gélido e cristalizado pelo tempo, pela fraqueza que se verificou no meu ser, pela solidão em que de mim fugiste, tal como um jogo inacabado sem qualquer fundamento. Porque te amo realmente, porque permiti que a minha vida se guiasse pelo teu mundo sincero e único, porque me apaixonei pelo teu ser, pela tua singela criação, pelo teu aconchego.

            E apenas o Despertar me retirou da Dor Constante em que eu e a imagem que recriei de ti nos encontrávamos.

            Acompanhado unicamente pela solidão, acordo então nesta cave medonha e escura, onde finalmente me apercebo que devo assumir a realidade que me impuseste por tua partida. A escuridão que aqui reina, nunca será tão negra quanto o vazio que deixaste no meu interior onde se aloja este penoso sofrimento...  Por ti.

 
Ricardo Guerra   6ºB
 
 
Campeonato Nacional de Escrita Criativa

                                                                                                                

Rasgou o papel, tomou a decisão


                                                                                                                                

                                                                                                                     

            Tanto. Porquê tanto e tão pouco? Porque o fizeste?

            Foram elas. Apenas e somente elas, as palavras que representaste naquela carta. Apenas elas me revelaram a verdade sobre ti. Sobre o que desejavas por ti mesma, pelo teu interior, pela tua essência.

         E agora, desapareceu tudo. Todo esse mundo que construímos passo a passo. Cada momento em que nossos simples corpos se uniam por si mesmos, sem qualquer problema, sem qualquer fortaleza a ultrapassar, em que os teus olhos brilhavam incandescentes como os tão doces e únicos corpos luminosos, denominados de estrelas. Nesses momentos em que um carinho se refletia brilhantemente na luz do mar, do mar que tomamos como nosso. Nesse mundo em que o cabelo se embalava à medida em que a felicidade se dispersava pelo vento. Os pés na areia, penetrados e congelados no tempo, como se quisessem sugar todo o amor incondicional em nós presente. Nesse planeta criado pelo nosso olhar, em que o amor se permitia superar ao poder interior da alma. Nessa vida mágica que construímos em que julgávamos poder enfrentar a realidade.

            Somente para nos sentirmos a nós, puramente a sós. Aconchegados no calor invisível da união. E para juntos percorrermos, passo a passo, a mesma aventura: a da real perceção da dimensão tão profunda que possui o Nós. A tua mão interiorizada na minha, como uma corrente inquebrável. Um beijo mais intenso do que qualquer outro. Porque mostrava amizade interna e imensa por aquele que é a eternidade num simples ser.

            Penetro então nesse lar. No nosso lar. Somente vejo essa junção de livros atafulhados que te ofereci sem qualquer destino ou fundamento. Essas molduras tão representativas, unidas entre si, às quais me incumbiste toda a minha dedicação. Os colchões ainda inundados da falsidade e dor que cada dia lhes mostrava, as paredes deterioradas, como que tentando libertar-se da verdade que apenas elas arrecadavam e prendiam.

            A liberdade. E agora a liberdade. Essa realidade distinta que me proporcionaste, pela tua honestidade ao revelares a tua falsidade perante mim. Perante a história que criaste sem qualquer piedade. Comigo. E essa porta revestida de ti e de mim abre-se e permite que me interiorize de que a vida reconstituir-se-á inevitavelmente, a essência dentro do meu corpo poderá agora penetrar somente na minha, só minha vida.

 

            Rasguei a tua carta. Rasguei o passado que criaste. Rasguei o tempo. Sem quaisquer ressentimentos... 
 
 

 
Ricardo Guerra  6ºB


Campeonato Nacional de Escrita Criativa

Quem tudo quer nada sabe


Meu único amor,


            Sempre cheguei a casa, esse local onde me separo dos falsos alicerces ao exterior. Largo o casaco e o chapéu de sempre, no local de sempre. O meu corpo cansado tudo revelava sobre mim - a caminhada pela rua e a passagem por tudo aquilo que sempre está igual e feliz como estava.

            Só o meu mundo interior se revelava triste pela mediocridade.

            E foste tu quem me permitiste ser quem sou, estar onde estou. Foste tu quem teve coragem de me mostrar uma nova visão da realidade, e do nós; aquela, a primeira que me fez perder sem jamais me encontrar no seu sentimento, no seu sabor, no seu olhar. Porque me tornaste diferente, sem me influenciar por aquilo que a vida impõe. Porque contigo superei aquilo que o meu corpo representa - a dor imensa por perder a minha família. Dava-te um beijo apressado, esperando aquele doce Boa Noiteque me desejaste com carinho, quando me outorgavas o poder sagrado da chave do teu coração, enquanto pensava que, pela consciência, jamais te retribuí toda a felicidade que mereces. A minha frágil consciência. Somente ela me impede de desfazer, todos os dias em que me encontro com ela. Sim a outra. A segunda. A amante. Apenas a consciência me impõe que, com uma lágrima encare, todos os momentos em que entrei na casa dela, sorrindo inconscientemente e esperando envolver-me nos seus lençóis, no seu espaço - por isso, todas as vezes em que vislumbras os astros esperando e chorando minha chegada, ao amanhecer, quando me questionavas qual a razão de não ter voltado a casa, te respondia com uma desculpa. Porque sempre as desculpas travam o percurso da vida, da verdade. Como o nosso.

            Por isso, neste momento, devo render-me e reconhecer que nunca me perdoarias se te contasse a mentira de que, espero, nunca te tenhas apercebido. Por essa triste razão lês esta carta. Porque tomei a decisão certa. Porque morrer envenenado foi o correto.

            E agora te peço: não chores ao saber que fui eu que misturou todo aquele veneno na bebida especial que me criaste, não chores por finalmente perceberes que desfiz o amor que revelaste em tudo. Porque  mereço, porque sou culpado dos sacrifícios que, sem hesitar, por mim enfrentaste.

            Porque tudo quis de ti, nunca soube qual o real sentimento de amor. Apesar de sempre julgar que te amei. E continuar a senti-lo.

 
Ricardo Guerra   6ºB

Campeonato Nacional de Escrita Criativa
 
                                                                                                                       

O médico olhava sem pestanejar para o paciente, havia uma tensão estranha na sala.


            Porquê? Porquê tu, estendida naquela maca, naquele tecido tão indigno?

            Tu. O teu cabelo brilhante contrastava com o negro da solidão e iluminava a pequena réstia de esperança, contida naqueles monitores cardíacos. Nada mais me confortava, quando sentia a tua pele sedosa, e inalava a fragrância que de ti exalava, os teus lábios doces contra a minha face, os teus olhos belos. E tu ali.

            E aí descobri a real existência em ti: Por detrás da pele nua e de tudo o que me revelaras até ao momento, órgãos, artérias, veias ocupavam o teu interior, rodeando o coração. Não entendo porquê. Não entendo, porquê uma anatomia tão complexa, quando amar-te completava qualquer necessidade do organismo, quando, na realidade a tua presença preenchia qualquer vazio na minha alma. Porque tu não criavas o futuro - tu era-lo. 

            Mas, porque a doença te retirou do sentimento e do conforto que criámos na nossa casa, e te levou para os portões dolorosos da morte, a nossa vida conjunta, separou-se e criou duas vidas, dois mundos, dois corpos diferentes: no mundo do Amor, vivemos segundo o coração, e na união do corpo, nesse mundo extenso e vasto ocupado pela liberdade ao nosso espírito (unido por esse traço delimitado por um caloroso 'amo-te, para sempre'); enquanto, aquele mundo que tentamos procrastinar intensamente, a Realidade, esse lugar onde todos os humanos residem e a complexidade do ser se entrega ao mundo e nele penetra, criando a escuridão da Solidão.

            E apesar de toda a minha experiência médica, a tensão de sofrer por ti, ainda prevalecia e se intensificava com a passagem cruel do tempo: deixar-te sofrer, e permitir que vivas mais algum tempo, como a Realidade impõe, ou permitir que o mundo do Amor me influencie, e acabar com o teu sofrimento - permitindo que a Morte, esse terceiro e inaceitável mundo, se apodere impiedosamente de ti. O que fazer?

            Olhei intensamente os meus colegas, suplicando pelo seu apoio e, através da magia de um 'sim', tudo se clareou - o meu amor por ti (se é que ainda o sentes) não permite que te faça sofrer nem mais um segundo - rasguei, ainda com a imortal última lágrima, o código de deontolgia médica, apenas para afirmar a rendição à fatalidade do amor. E, parando de pestanejar, deixei-te morrer. Só não sei ainda a dor de aceitar que jamais voltarás...Mas amar-te-ei para sempre.


 
Ricardo Guerra   6ºB

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