quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Carta de Demissão de Deus ao Mundo


Cela iluminada pelo escuro, época em que os presidentes deixaram de ser deuses


Meu amor,


             É hoje.

            A chuva penetra pelas frestas da cela revestida de negro e a secretária, sem tinta, suporta os papéis onde escrevi tuas últimas palavras: "Promete-me, que, estaremos juntos novamente..

            Sempre recordo essa outra noite em que te conduzi à floresta para que o impensável acontecesse: pela minha crueldade de te colocar uma faca no coração, o teu peito expeliu sangue, os teus olhos cerraram-se imaculadamente e o teu corpo, revelou uma frenética energia com a qual te tentaste libertar da morte. O meu sorriso maquiavélico e as últimas palavras que pronunciaste, antes de também os teus lábios se fecharem, marcaram assim, o teu final.

            Eu, que me assumi legalmente o Deus deste país, seu presidente... Porquê?

            E tanto que criámos juntos, tanto que adotamos como nosso: a realidade dos nossos sentimentos, a coragem de nos apoiarmos mutuamente, a noite em que, sem qualquer pudor, despimos nossas roupas e nos revelamos um ao outro, noite essa, em que suores se confundiram, nossos mundos se tocaram, nossos corpos se uniram, nossas línguas se entrelaçaram na felicidade de nos interiorizarmos casados numa cama, numa queima de pneus de carro até ao motel onde isso aconteceu, num beijo intenso libertado das nossas bocas, no prazer de efetuar o maior pecado do amor - tudo desapareceu.

            Hoje, miro pelas grades da prisão e, como sempre, desde que os polícias me agarraram e me colocaram no veículo que me conduziu a esta solidão, te recordo nos contornos do sol: a tua pura alma, o teu belo sorriso, o teu tão ténue olhar.

            E, após o que sofri, tomo a decisão: retiro vagarosamente minhas vestes, considerando o porquê de existir em corpo. Na lâmina daquela faca fatal, ainda se verificava sangue teu e restos de alguma da tua pele; essa cruel lâmina que hoje coloco no interior da minha carne, e que assim me permite sentir o que sentiste quando te abandonei naquela floresta.

            Não, nem a prisão perpétua seria suficiente para sustentar um crime tão horrendo, como aquele que fiz com que sofresses.

            Por isso me demiti do mundo: para cumprir a promessa que me impuseste e me arrepender perante ti.   


Até nos vermos,

 

                                   Um 'Deus' irremediavelmente pecador.

 
 

P.S.: Porque me és. Sim.
 
 
 
Ricardo Guerra  6ºB
 
 
Campeonato Nacional de Escrita Criativa

 
 

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