Cela iluminada
pelo escuro, época em que os
presidentes deixaram de ser deuses
Meu amor,
É hoje.
A
chuva penetra pelas frestas da cela revestida de negro e a secretária, sem tinta,
suporta os papéis onde escrevi
tuas últimas palavras:
"Promete-me, que, estaremos juntos novamente.”.
Sempre
recordo essa outra noite em que te conduzi à floresta
para que o impensável acontecesse:
pela minha crueldade de te colocar uma faca no coração, o teu peito
expeliu sangue, os teus olhos cerraram-se imaculadamente e o teu corpo, revelou
uma frenética energia com a
qual te tentaste libertar da morte. O meu sorriso maquiavélico e as últimas palavras que
pronunciaste, antes de também os teus lábios se fecharem,
marcaram assim, o teu final.
Eu,
que me assumi legalmente o Deus deste país,
seu presidente... Porquê?
E
tanto que criámos juntos, tanto
que adotamos como nosso: a realidade dos nossos sentimentos, a coragem de nos
apoiarmos mutuamente, a noite em que, sem qualquer pudor, despimos nossas
roupas e nos revelamos um ao outro, noite essa, em que suores se confundiram,
nossos mundos se tocaram, nossos corpos se uniram, nossas línguas se entrelaçaram na felicidade
de nos interiorizarmos casados numa cama, numa queima de pneus de carro até ao motel onde isso
aconteceu, num beijo intenso libertado das nossas bocas, no prazer de efetuar o
maior pecado do amor - tudo desapareceu.
Hoje,
miro pelas grades da prisão e, como sempre,
desde que os polícias me agarraram e
me colocaram no veículo que me
conduziu a esta solidão, te recordo nos
contornos do sol: a tua pura alma, o teu belo sorriso, o teu tão ténue olhar.
E,
após o que sofri, tomo
a decisão: retiro
vagarosamente minhas vestes, considerando o porquê de existir em corpo. Na lâmina daquela faca
fatal, ainda se verificava sangue teu e restos de alguma da tua pele; essa
cruel lâmina que hoje
coloco no interior da minha carne, e que assim me permite sentir o que sentiste
quando te abandonei naquela floresta.
Não, nem a prisão perpétua seria
suficiente para sustentar um crime tão
horrendo, como aquele que fiz com que sofresses.
Por
isso me demiti do mundo: para cumprir a promessa que me impuseste e me
arrepender perante ti.
Até nos
vermos,
Um
'Deus' irremediavelmente pecador.
P.S.: Porque me és. Sim.
Ricardo Guerra 6ºB
Campeonato Nacional de Escrita Criativa
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